A falsificação da realidade, trabalho feito com sucesso pela mídia privada, desde sempre, é cada vez mais descarada. A prática política se utiliza dessa mesma estratégia, criando títulos bonitos para ações horrorosas. Um desrespeito à inteligência, um cinismo criminoso.
O prefeito recém empossado que teve sua
campanha eleitoral patrocinada, em grande parte, por empresas imobiliárias,
anuncia a remoção de “comunidades pobres”, segundo ele, para livrá-las dos
riscos de desabamentos. A lista, provavelmente feita pelas empresas como
condição de patrocínio à campanha, inclui as áreas valorizadas pelo mercado
imobiliário cobiçada pelos olhos grandes dos empresários.
Uma barreira visual é construída ao
longo da Linha Vermelha para esconder o complexo de favelas da Maré dos olhos
dos gringos e visitantes que vão do aeroporto internacional para o centro e zona
sul da cidade. O motivo alegado é proteger as frágeis orelhinhas dos moradores
do ruído produzido pela via expressa. A ironia é automática, a raiva,
inevitável. Até as palavras são torcidas, deformadas, torturadas.
Como diz Gizele Martins, moradora da
Maré, chamar favela de comunidade pobre é o mesmo que chamar um negro de
moreninho.
Favela é comunidade roubada. Em
direitos, em cidadania, em humanidade.
Morador de rua não existe, o que existe
são desabrigados.
Flexibilização é destruição de direitos
trabalhistas, é violação de leis.
Revitalização é expulsão de pobres que
se abrigaram em prédios abandonados - devolvendo-os à situação de desabrigados -
para ceder os espaços valorizados pela especulação imobiliária a meia dúzia de
empresários ricos.
Segurança pública é repressão e
contenção do público.
Emprego, em geral, é exploração até o
talo, é destruição de qualquer qualidade de vida.
Transporte público é tortura e
aviltamento.
Pessoas que se manifestam para conseguir
respeito aos seus direitos constitucionais, permanentemente negados por um
Estado que não cumpre sua própria constituição, são classificadas de
baderneiras. As ordeiras são as que se conformam, se calam e sofrem sem
reclamar, numa depressão silenciosa. “Morram quietos, pobres, mesmo vivos”, é o
que nos diz o sistema social dominado pelos ricos mega-empresários, os que têm
os políticos no bolso.
O Estado tem sido um robinhude ao
contrário, rouba dos pobres pra dar aos ricos.
Democracia é um cenário fajuto, cada vez mais
esfarrapado – democracia é um povo alimentado, instruído, informado e
consciente, tomando decisões a seu próprio respeito. Senão, é a “cracia do demo”
e nada mais. Nunca tivemos democracia, só fachada e ilusão.
Os pobres constróem, mantêm, fazem
funcionar e ainda sustentam, via impostos, toda a sociedade. E são desprezados,
sabotados, enganados, roubados, explorados, controlados, reprimidos e
violentados, cotidianamente. O sentimento de inferioridade e impotência plantado
há gerações, pela ideologia midiática e sua máquina de fazer opinião e distorcer
a realidade, não deixam perceber a força enorme que a maioria possui. Afinal,
quem planta o que se come? Quem carrega as caixas, faz o transporte e prepara a
comida? Quem abre as portas, prepara os ambientes, faz a limpeza, tira o lixo?
Quem cuida das crianças, dos carros, das casas, dos animais? Quem conserta
vazamentos, fiações, quem instala os canos, levanta as paredes? Quem está na
linha de montagem do que quer que seja que se fabrique? Quem corta os tecidos e
costura as roupas? Quem desce aos subsolos dos gases, fiações e tubos, desentope
os entupimentos, conserta os vazamentos? Quem instala as torres de transmissão,
seja de comunicações, seja de transmissão de energia? Quem se pendura nas
alturas pra todo tipo de risco? Quem viabiliza a existência da sociedade são os
pobres.
O empresário rico diz que “dá empregos”
quando, na verdade, tira sua riqueza, seus privilégios, seu luxo e ostentação da
exploração dos seus empregados, pagando o mínimo possível e violando direitos
trabalhistas. Um rico é uma ilha de arrogância cercada de pobres por todos os
lados. Um pobre é a base inconsciente de toda a estrutura. Um pobre pode viver
sem ricos. Um rico não pode viver sem pobres.
Muito fácil perceber que sem os ricos a
sociedade seria menos injusta e perversa. Mas sem os pobres, ela seria
simplesmente impossível.
Alguns dizem ser restrita e
preconceituosa a visão da sociedade dividida entre ricos e pobres. É certo, há
muitos patamares, tanto na pobreza, quanto na riqueza, inclusive com a
importante classe média dividida em degraus – costumo me referir às classes
médias, que vão do gerente de loja, do sargento ou do mestre de obras ao diretor
de grande empresa, ao general ou ao engenheiro-chefe. Mas é impossível não
considerar o contraste brutal entre a parte de baixo e a parte de cima. Embaixo,
carências, desrespeitos, dificuldades de sobrevivência assolam mais da metade
das pessoas. Em cima, luxos, desperdícios, ostentações e usufrutos que ofendem a
sensibilidade de quem a tem. Quem está na parte de baixo, como eu, vê a parte de
cima como um bloco homogêneo, arrogante e privilegiado, digno do respeito e
consideração pelo poder público, muito ao contrário de nós. As diferenças
internas de classe, dessa forma, são irrelevantes. Ricos são os que têm mais do
que precisam pra viver, pobres são os que têm menos. Simplifico porque no fim
das complexidades, a coisa é bem simples. Não há uma fronteira clara entre as
classes, mas os extremos contrastam dolorosamente. É aí que a sociedade se
apresenta dividida entre ricos e pobres, apesar dos intermediários que podem
chegar a 30% da população, variando a quantidade e a qualidade dos privilégios,
mas tendo em comum os direitos respeitados, pelo menos os básicos. Só a
informação foge a esta regra, pois é distorcida sem preconceito, para
todos.
Afinal de contas, pior que a pobreza de grana é
a pobreza de espírito. E essa não depende da classe social, embora prevaleça
entre os mais ricos. Para usufruir de privilégios sem incômodos de consciência,
é preciso empobrecer a alma, acreditar em mentiras crassas e criar indiferença
ao sofrimento cotidiano de milhões.
Para haver respeito aos direitos
fundamentais desses milhões, é preciso exterminar esses privilégios materiais,
instrucionais e informacionais, privilégios grosseiros e desumanos, apresentados
com orgulho, quando na verdade são uma vergonha.
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