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Como desconhecidos , porém bem conhecidos ; como morrendo , porém vivemos ; como castigados , porém não mortos ; Como entristecidos , porém sempre alegres ; pobres, mas enriquecendo a muitos ; nada tendo , mas possuindo tudo.

Evangelho de : Paulo



domingo, 6 de novembro de 2011

Diálogo sobre relacionamento

PENSO que, compreendendo a vida de relação, chegaremos a compreender o que significa independência. A vida é um processo de constante movimento de relações, e sem se compreender a vida de relação, produziremos confusão, e luta, e esforços inúteis. Assim sendo, releva compreender o que significa vida de relação; porque são as relações que constituem a sociedade, e não é possível o isolamento. O que se isola, logo perece.

Nosso problema, pois, não é o de sabermos o que é a independência, mas, sim, o que significa a vida de relação. Com a compreensão da vida de relação, que é a conduta entre seres humanos, quer íntimos, quer estranhos, quer próximos, quer distanciados, começaremos a compreender todo o processo da existência e do conflito entre o cativeiro e a independência. Cumpre-nos, pois, examinar com muito cuidado o que significa vida de relação.

A vida de relação não é no presente um processo de isolamento e, portanto, de conflito constante? As relações entre vós e outra pessoa, entre vós e vossa esposa, entre vós e a sociedade, são produto desse isolamento. Por isolamento queremos dizer que vivemos a todas as horas em busca de segurança, de satisfação e de poder. Afinal de contas, cada um de nós, em suas relações com alguém, busca a satisfação; e onde existe a busca de conforto, de segurança, quer se trate de uma nação, ou de um indivíduo, tem de haver isolamento, e o que está no isolamento provoca sempre conflito. Tudo o que resiste produz necessariamente conflito entre si e aquilo a que está resistindo; e, visto que, na maioria dos casos, as nossas relações constituem uma forma de resistência, criar uma sociedade que gera, necessariamente, o isolamento e, portanto, conflito, dentro e fora desse isolamento. Precisamos, pois, examinar as relações e sua função em nossas vidas. Afinal de contas, o que eu sou — minhas ações, meus pensamentos, meus sentimentos, meus impulsos, minhas intenções — produz aquela relação entre mim e outra pessoa, o que chamo sociedade. Não existe sociedade sem essa relação entre duas pessoas; e antes de podermos falar de independência, de agitar bandeiras, e tudo o mais, cumpre-nos compreender a vida de relação, o que significa que devemos exa minar a nós mesmos em nossas relações com os outros.


Ora, se examinamos a nossa, vida, as nossas relações com os outros, veremos que são um processo de isolamento. Na realidade não nos importamos com os outros. Embora falemos muito a tal, respeito, o fato é que não nos importamos. Vivemos em relação com alguém só enquanto essa relação nos satisfaz, enquanto nos proporciona um refúgio, enquanto nos apraz. Mas, no momento em que ocorre em nossas relações uma perturbação que gera desconforto em nós, abandonamos essas relações. Por outras palavras, só existem relações, enquanto nos dão prazer. Pode parecer severo isso, mas se realmente examinardes, com muita atenção a vossa vida, vereis que é um fato; e evitar um fato é viver na ignorância, e isso nunca produzirá relações adequadas. Assim, se examinamos as nossas vidas e observamos as nossas relações, vemos que elas constituem um processo em que levantamos resistência uns contra os outros, em que erguemos uma muralha, por cima da qual olhamos e observamos os outros; mas conservamos sempre a muralha e permanecemos atrás dela, quer seja uma muralha psicológica, quer seja uma muralha material, uma muralha econômica, uma muralha nacional. Enquanto vivemos no isolamento, não há relações com outra pessoa; e vivemos fechados, porquanto isso nos dá muito mais satisfação, porque pensamos que é muito mais seguro. O mundo está tão cheio de divisão, há tanta aflição, tanta dor, tanta guerra, destruição, miséria, que desejamos fugir e viver dentro das seguras muralhas do nosso ser psicológico. Nessas condições, a vida de relação, para a maioria de nós, é deveras um processo de isolamento e é bem claro que tais relações hão de constituir uma sociedade também tendente ao isolamento. É isso mesmo que está acontecendo no mundo inteiro: permaneceis em vosso isolamento e estendeis a mão por cima da muralha, chamando a isso nacionalidade, fraternidade, ou o que quiserdes; mas o fato é que continuam a existir os governos soberanos e os exércitos. Isto é, apegados às vossas próprias limitações, pensais criar a unidade mundial, a paz mundial — o que é impossível. Enquanto tiverdes uma fronteira nacional, econômica, religiosa, ou social, é óbvio que não ha verá paz no mundo.

Ora bem: o processo de isolamento é um processo de busca de poder e, quer desejemos o poder para nós mesmos, quer o desejemos para um grupo nacional ou racial, haverá isolamento pois o próprio desejo de poder, de posição, significa separatismo. Afinal de contas é isso o que deseja cada um de nós, não é verdade? Cada um deseja uma posição poderosa, na qual possa exercer domínio, seja no lar, seja no escritório, seja num regime burocrático. Cada um busca o poder, e conseqüentemente há de fundar uma sociedade baseada no poder — militar, industrial, econômico, etc .— o que também é óbvio. O desejo de poder não gera, por sua própria natureza, o isolamento? Julgo muito importante compreender isso; porque, se desejamos um mundo pacífico, um mundo sem guerras, sem destruição aterradora, sem aflições catastróficas, numa escala imensurável, temos de compreender essa questão fundamental, não achais? Enquanto o indivíduo busca o poder, seja em grande escala, seja em pequena escala, quer como Primeiro Ministro, como governante, como advogado, quer como simples marido ou esposa, no lar, isto é, enquanto houver o espírito de domínio, o espírito de compulsão, o espírito de aquisição de poder, influência, não podeis deixar de criar uma sociedade que é o resultado de um processo de isolamento, porquanto o poder, por sua própria natureza, é um fator de separação. O homem afetuoso, bondoso, não tem o espírito do poder, e por conseguinte não está ligado a nenhuma nacionalidade, a nenhuma bandeira. Mas o homem em busca do poder, sob qualquer forma que seja, quer derivado da burocracia, quer da auto-projeção que ele chama Deus, continua preso a um processo de isolamento. Se examinardes muito atentamente esta questão, vereis que o desejo de poder, por sua própria natureza, é um processo de enclausuramento. Cada um está interessado na própria posição, na própria segurança, e enquanto existir esse impulso a sociedade tem de estar baseada num processo de isolamento. Sempre que existe a busca do poder há o processo de isolamento, e aquilo que vive isolado cria necessariamente o conflito. É isso mesmo que está acontecendo no mundo inteiro: cada grupo ambiciona o poder e está, com isso, isolando a si mesmo. Tal é o processo do nacionalismo, do patriotismo, que leva, afinal, à guerra e à destruição.

Ora bem; sem relações não há possibilidade de existência; e enquanto as relações estiverem baseadas no poder, haverá o processo de isolamento, que inevitavelmente gera conflito. Não há coisa tal como viver no isolamento: nenhum país, nenhum povo, nenhum indivíduo pode viver em isolamento; todavia, porque viveis em busca do poder, por tantas maneiras diferentes, criais o isolamento. O nacionalista é uma maldição, porquanto, em virtude do seu espírito nacionalista, patriótico, está levantando urna muralha de isolamento. Tão identificado está com a sua nação, que ergue uma muralha contra outra nação. E que acontece, senhores, quando levantamos uma muralha contra alguma coisa? Esta coisa fica constantemente a chocar-se contra a muralha. Quando resistis a alguma coisa, a vossa resistência é uma indicação de que estais em conflito com essa coisa. Está visto, pois, que o nacionalismo, que é um processo de isolamento, que é o resultado da busca do poder, não pode implantar a paz no mundo. O homem que é nacionalista e fala de fraternidade está mentindo, está vivendo em estado de contradição.

Ora, a paz é essencial no mundo, pois, do contrário, seremos destruídos. Uns poucos escaparão, mas haverá uma destruição sem paralelo, a menos que resolvamos o problema da paz. A paz não é um ideal. Todo ideal, como já vimos, é fictício. O que é real tem de ser compreendido, e essa compreensão do real é impedida pela ficção a que chamamos ideal.






O fato real é que cada um está em busca do poder, de títulos, de posições de mando, etc. — sendo tudo isso disfarçado, de várias maneiras, com palavras bem intencionadas. Esse problema é vital, não é um problema teórico, não é um problema susceptível de adiamento: ele exige ação imediata, pois é bem evidente que a catástrofe se aproxima. Se ela não vier amanhã, virá no ano próximo, ou um pouco mais tarde, porque o impulso do processo de isolamento já existe. E todo aquele que medita sobre isso tem de atacar a raiz do problema, que é a busca individual de poder, que cria o grupo, a raça, a nação, todos ambiciosos de poder.



Ora, pode uma pessoa viver no mundo sem o desejo de poder, de posição, de autoridade? Pode, é claro. Uma pessoa o faz, quando não se identifica com algo maior do que ela. Esta identificação com algo maior — o partido, a nação, a raça, a religião, Deus — é o desejo de poder. Porque, em vós mesmos, sois vazios, inertes, fracos, gostais de identificar-vos com algo que seja maior do que vós. Esse desejo de vos identificardes com urna coisa maior é o desejo de poder. Eis porque o nacionalismo ou qualquer espírito comunalista representa uma maldição tão grande no mundo; é sempre o desejo de poder. Assim, o que mais importa, para a compreensão da vida, e portanto das relações, é descobrir o motivo que impele cada um de nós; pois o que esse motivo é, o ambiente também é. Esse motivo produz paz ou destruição no mundo. É por conseguinte de grande importância que cada um de nós fique cônscio de que o mundo está em estado de aflição e destruição e compreenda que, se consciente ou inconscientemente, estamos em busca do poder, estamos contribuindo para a destruição e, logo, nossas relações com a sociedade serão um constante processo de conflito. Há múltiplas formas de poder: ele não significa apenas a aquisição de posição, e de riquezas. O próprio desejo de sermos alguma coisa é uma forma de poder, que acarreta isolamento e, portanto conflito; e, a não ser que cada um compreenda o motivo, a intenção de suas ações, a mera legislação governamental é de mui pouca valia, por quanto o interior sempre há de superar o exterior. Podeis levantar exteriormente uma estrutura pacífica, mas os homens que a dirigirem a alterarão de acordo com sua intenção. Eis porque muito importa àqueles que desejam criar uma nova civilização, uma nova sociedade, um novo estado, eis porque muito importa que compreendam primeiro a si mesmos. Ao tornar-nos cônscios de nós mesmos, dos nossos vários movimentos e flutuações interiores, compreenderemos os motivos, as intenções, os perigos que jazem ocultos; e só nesse percebimento há transformação. A regeneração só poderá vir quando cessar a busca de poder; e só então poderemos criar uma nova civilização, uma sociedade não baseada no conflito, mas na compreensão. A vida de relação é um processo de auto-revelação, e se, sem compreendermos a nós mesmos, as tendências da nossa mente e de nosso coração, tratamos de estabelecer uma ordem externa, um sistema externo, uma fórmula astuciosa, isso tem muito pouco valor. Assim, o que importa é compreendermos a nós mesmos em nossas relações com os outros. As relações, nesse caso, se tornam, não um processo de isolamento, mas um movimento no qual descobrimos os nossos próprios motivos, nossos próprios pensamentos, nossos próprios interesses; e esse mesmo descobrimento é o começo da libertação, da transformação. Ê só essa transformação imediata que pode produzir, no mundo, a revolução fundamental, radical que se torna tão premente. Uma revolução dentro das muralhas de isolamento, não é revolução. A verdadeira revolução só será possível depois de destruirdes as muralhas de isolamento, e isso só ocorrerá quando não mais estiverdes em busca de poder.

Krishnamurti – 15 de agosto de 1948


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