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Como desconhecidos , porém bem conhecidos ; como morrendo , porém vivemos ; como castigados , porém não mortos ; Como entristecidos , porém sempre alegres ; pobres, mas enriquecendo a muitos ; nada tendo , mas possuindo tudo.

Evangelho de : Paulo



quinta-feira, 2 de junho de 2011

Existe súbito ataque cardíaco?





Eu estava aproveitando a folga gerada pela pausa da chuva, observando as incontáveis gotículas de água nas pontas das verdes folhas da pequena pitangueira, quando fui interrompido pelo gesticular esbaforido de dona Elza, do alto de sua varanda, cujo parapeito é coberto de musgos e fungos. Ela tinha o olhar bem mais pesado do que o de costume. Pessoa sofrida, dedicou totalmente sua vida aos filhos e para a continuidade de uma pequena malharia deixada por seu marido, vitimado num assassinato. Aos 76 anos de idade, sempre trazia no olhar uma expressão para lá de carrancuda e, não raro, despejava uma infinidade de lamúrias nos ouvidos dos menos precavidos. Devido suas traumáticas experiências passadas, parecia ter perdido a capacidade de ver as coisas boas da vida, tornando-se assim, uma reclamadora compulsiva. Não raro, com movimentos apressados de fazer inveja a muitos da sua idade, entrava pela porta da loja, praguejando contra o barulho do vizinho, as loucuras do genro, o cliente mal pagador, ou então, pelos abusivos valores das suas contas de água e luz. Lembro-me de somente numa ocasião, ter escutado dela, em meio de sorrisos sapecas, sobre as travessuras de sua infância, quando dava um jeitinho de "distribuir" um pouco das finanças de seus pais, para que alguns de seus funcionários pudessem comprar os caros remédios para bronquite.

Há uns quarenta dias, ao lembrar-me de uma cena do filme "O Poder Além da Vida", disse-lhe sorrindo, quando aceleradamente vinha em minha direção:

- Calma lá! Antes que a senhora comece a desfilar o seu rosário de lamúrias, trate de voltar para sua casa e só retorne aqui, quando tiver algo a dizer, cujo conteúdo seja totalmente diferente daquele que a senhora está acostumada a me trazer.

- Que é isso? Perdeu o juízo? Não tem mais respeito pelos meus cabelos brancos?

- Justamente por respeitá-los e também por respeitar os meus ouvidos é que me recuso a continuar dando suporte para sua neurose de reclamar compulsivamente dos acontecimentos do seu dia-a-dia. Não estou mais a fim de escutar suas lamúrias. Eu tenho certeza que em algum lugar ai dentro da senhora, deve existir assuntos extremamente interessantes e alegres. Portanto, somente volte aqui quando tiver algo para me contar que seja diametralmente oposto ao discurso que lhe mantém com esse seu rosto sofrido de sempre.

- Sabe, você é "desaforento da bexiga"! Mas, no fundo do fundo, gosto muito desse seu jeito. Você sempre tem uma palavra para desafiar o modo de ser da gente. Estou muito feliz por meu filho estar começando a conversar com você. Só de pensar que daqui alguns dias vocês já não estarão mais aqui, chego a sentir um grande aperto no peito...

- Está vendo só? Lá vem a senhora novamente se limitando a ver apenas o lado negativo dos acontecimentos e, com isso, dando forças para esse seu lado resmungão... Volte para casa e só volte aqui quando tiver algo de bom para me contar!

- Mas...

- Nem mais nem menos! Recado transmitido!

Depois de me ouvir, de costas foi se afastando bastante sem graça em direção à porta da loja, onde se deteve por alguns segundos, para depois em meio de um sorriso fazer um movimento com as mãos, afirmando seu desejo de me dar umas boas palmadas. Desde esse dia, sempre que me via, continha seu desejo de resmungar com um leve sorriso no cantinho do olhar. Desta vez, pela maneira com que me olhou, deixou claro no ar, que algo realmente doloroso havia lhe ocorrido. Permaneci silenciosamente olhando para o alto em sua direção. Ela parecia atônita, perdida em algum lugar de suas lembranças...

- Você está vendo aquela senhora de vestido azul marinho que vai logo ali à frente? – Disse-me do alto, apontando em sua direção.

- Sim, dona Elza, o que tem ela?

- Veio aqui me avisar que meu irmão caçula, de 52 anos de idade, não resistiu ao súbito ataque cardíaco, morrendo na mesa de operação.

Disse-me ela sem ao menos se dar conta de que não existe essa absurda idéia de "súbito" ataque cardíaco... Isso nada tem de súbito: é apenas uma resultante de um modo de vida acelerado de anos e anos.

- Ele era o mais forte de todos e sempre tinha uma palavra de incentivo na ponta da língua, apesar de quase nunca ter tempo para si mesmo. Era um homem muito trabalhador – trabalhava dia e noite, noite e dia – gostava de brincar dizendo sempre que seu nome era trabalho e seu sobrenome hora extra. No fim, tadinho, o "home num guênto!"...

Disse-me do alto de sua sacada com seu olhar fixo, não em mim, mas nos desenhos desgastados de sua calçada ainda molhada pela chuva da manhã. Ela respirou profundamente, levantou seu olhar em direção ao céu cinzento, como que praguejando contra Deus, mas, devido ao forte som da grande quantidade de ônibus que naquele instante passavam por aqui, não pude compreender o que dizia. Mesmo assim, mantive meu olhar fixamente direcionado para sua face tristonha...

- Dona Elza, desculpe-me, mas, não consegui escutar o que a senhora acabou de dizer, por causa do barulho do transito.

- Ah, deixa prá lá! - Respondeu-me com um aceno raivoso, imediatamente virando-me as costas e, cabisbaixa saindo em direção ao interior de sua casa.

Tão logo sua imagem desapareceu por detrás dos espaços deixados pela arquitetura das antigas lajotas que compõe o muro de sua varanda, comecei a pensar que, talvez, um dos maiores sacrilégios humanos seja o de chegar ao final de uma existência, impossibilitado de fechar os olhos com leveza e ternura, agarrado aos lençóis de um leito de hospital, quem sabe, por ter se permitido viver uma vida sobre os ditames dos ponteiros de um relógio, ou então em atividades e relacionamentos destituídos de um verdadeiro senso de significado e paixão.

Passado uma hora e meia, pude ver dona Elza voltando do mercado próximo, com um enorme óculos escuros, carregando em seus braços, como de costume, várias sacolinhas amarelas que faziam contraste ao impecável e discreto conjunto preto, desses usados pelas senhoras em luto.


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O povo não precisa de liderança, o povo precisa de consciência e tem muita gente fazendo esse trabalho, acadêmicos e não acadêmicos. Eu sei porque eu trabalho em favela muitas vezes e sei que tem muito movimento cultural rolando. Tem muito trabalho de base acontecendo. Ele não aparece e é bom que não apareça, porque se aparecer, o sistema vai lá pra acabar com aquilo. ( Eduardo Marinho )