Depois das chuvas, a vegetação ganha muito mais vida, em especial, o tom alaranjado das várias flores cujo nome desconheço, nascidas bem ao pé das pedras de mármore que cercam a nossa pitangueira.
Uma jovem de olhar tristonho, caminhando pela calçada, inconscientemente arranca uma folha da pequenina árvore somente para lançá-la ao concreto alguns metros à frente, sem ao menos se permitir o conhecimento de seu aroma.
O vento frio e as pesadas nuvens em vários tons de cinza prenunciam mais chuvas para o período da tarde. A quantidade d'água proveniente das chuvas tem sido tanta que um tom musgoso já começa a se espalhar junto ao rodapé das escadas, onde recentemente pintamos de branco.
Devido o período de retorno às aulas, o transito ainda não voltou ao seu movimento costumeiro e, talvez por isso, a tiazinha da perua escolar freneticamente dispara sua buzina com quase 300 metros do local onde lhe espera a pequena Bruna, com seu sorrisinho banguela e a mochila nas costas. Quem sabe, por ainda ser criança, consegue não se irritar com o pesado e barulhento fluxo de carros, bem como com a neurose de seus condutores, espalhada através de suas buzinas e o modo apressado com o qual dirigem.
Na esquina, encostado à velha e pequenina banca de jornal, avisto meu conhecido Gino, numa postura parecida com aquela de quem tenta recuperar o fôlego. Após alguns minutos de espera silenciosa, segue sua caminhada em minha direção, com passos visivelmente vacilantes. Mantém a coluna bem mais ereta do que o de costume e, pela expressão do seu olhar, torna-se claro que em seus movimentos existe a presença de dor. Enquanto ele caminha, preparo uma cadeira para que possa descansar e prosear um pouco à sombra da pitangueira.
- Bom dia Gino! Como anda sua existência? Com vida ou sem vida?
- Como já deve ter percebido pelo meu andar, minha vida anda um tanto travada.
- O que se passa?
- Não sei dizer ao certo se é a coluna ou o meu nervo ciático. Só sei que travou tudo e o pior é que agora sinto que a dor está começando a se espalhar para a parte posterior da minha perna direita. Estou vindo da igreja messiânica; fui até lá para que me ministrassem o Johrei, quem sabe assim eu melhoro um pouco. Faz tempo que eu tenho esse problema, mas, como desta vez, nunca havia atacado antes. Já estou há dois dias sem poder me movimentar direito, trancado dentro de casa sem ao menos poder trabalhar. Preciso correr atrás do prejuízo, pois você sabe bem como é que é, na minha idade, não posso me dar a esse luxo.
- Quem sabe, talvez a sua coluna esteja gritando por causa do acumulo de "prejuízos" que você possa estar carregando na sua mochila.
- Vai saber... Não acho nada difícil.
- Sabe, não sei se é ou não verdade, mas, dizem alguns místicos que as dores nas costas significam que podemos estar carregando fardos que não são nossos e, portanto, não são de nossa responsabilidade... Que estamos aceitando um modo de vida que difere muito com aquilo que pede o nosso interior.
- Olhando por esse prisma, até que faz bastante sentido... Tenho consciência de que muita coisa precisa ser revista e, entre elas, muitas devem ser deixadas de lado, no entanto, confesso que tenho medo de mexer com isso. Falta coragem.
- Gino, você tem consciência do que acabou de me dizer?
- Não precisa fazer essa cara de irmão mais velho... Claro que tenho!
- Então, vai ver que é por isso que a inteligência do seu corpo está fazendo você travar... É preciso ouvir os gritos do nosso corpo. Penso que toda a vez que o ser humano insiste em fazer vistas grossas para as situações conflitantes do seu cotidiano, quando insiste em manter os olhos e os ouvidos fechados para aquilo que o mantém estagnado, rapidamente a inteligência corporal entra em ação. O pior de tudo, é que muitos de nós fazemos parte da geração "Doril"...
- Sim, tomou "Doril, a dor sumiu"... Só que no meu caso não funciona bem desse jeito. Mas, e você? – Disse-me ele, tentando desviar a atenção do assunto.
- Que tenho eu? Que gostaria de saber?
- Como vai seu romance, ou melhor, seu casamento?
- Ah! Casamento... Sei!... Bem, aqui, de fato, as mentes continuam casadas. Está havendo um constante movimento de casamento, tanto na vertical como na horizontal.
- Isso é muito bom de ouvir. Se não tiver esse constante casamento na vertical, por melhor que seja a constancia e a qualidade do balanço na horizontal, não há tempo que impeça as colunas da casa um dia vir abaixo.
- Você escutou bem o que disse?
- Sim! – Respondeu-me com um sorrisinho maroto no canto do olhar, enquanto abaixava a cabeça levando a mão sobre sua calvície.
- Pois é! Sem a menor sombra de dúvida, se não existir esse casamento dos fragmentos da mente, não há como se tornar uma pessoa e, sendo apenas meia pessoa, não há casamento que agüente. Casamento tem que ser o encontro entre duas pessoas e não entre duas metades. Esse papo de "a tampa da minha panela" ou "a metade da minha laranja", para mim, é pura insanidade.
- Pior é que é isso o que a gente mais escuta a vida toda. Cresci ouvindo isso na minha família!
- É por isso que o que mais se vê por aí é esse nefasto movimento de empurrar a vida com a barriga – ou então com a coluna – esse conformismo e o comodismo de um jogo de interesses velados a dois. E assim a vida vai passando e essas pessoas "não saem de Ford e nem saem de Cinca"...
- Vê se pega leve!
- A carapuça serviu?
- Deixe-me ir, senão, daqui a pouco não consigo nem mesmo chegar à padaria. Agora vou nessa. Noutra hora passo por aqui para conversarmos com mais tempo, além do que, preciso passar aqui para pegar umas dicas de filmes com você.
- Para com isso! Está pensando que sou romeiro? Romeiro é que vive de promessa! Você só fala. Tudo bem! Vai nessa, mas vê se se cuida!
E, com o sorrisinho maroto no olhar e as mãos apoiando sua região lombar, lá se foi Gino em seu vacilante caminhar, enquanto eu, em meio de minha insatisfação, continuo a apreciar as cores alaranjadas da anônima flor crescida em nosso canteiro em tempos de carnaval.
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