Há uma pomba branca, solitária, tudo observando sobre um dos fios de alta tensão. O sol está absurdamente quente para uma manhã primaveril e mesmo na sombra, a roupa causa bastante desconforto. Do outro lado da rua, uma senhora por volta dos 60 anos de idade, provavelmente avó, sob a enorme sombrinha colorida, leva uma pequena criança para a escolinha, ambas, com o olhar distante. O ar está bastante seco, acentuando o acumulo de pó, o que ocasiona ardência nas vistas.
Abacaxis, bananas, laranjas, mandiocas e uma enferrujada balança manual, são transportadas num desses carrinhos de construção, oferecidos de casa em casa por um simpático vendedor ambulante, com sua bermuda folgada, camisão totalmente aberto e um par de chinelas bastaste desgastadas.
Enquanto eu iniciava a escrita deste texto, encostado no batente da vitrine da loja, ele chegou com aquele seu jeitinho recatado de sempre.. Calça jeans, puxada ao máximo na cintura, sapatos bem lustrados, poucos brancos cabelos bem alinhados, no bolso da camisa pólo a pequena caderneta de anotações de seus assuntos preferidos e no pulso, o velho relógio de estimação deixado por seu pai...
- Salve, salve, JR! E aí? Suando para fazer suas contas?
- Que nada, apenas escrevendo um pouco sobre o meu cotidiano...
- Cotidiano de paulista se resume no samba para pagar contas... É só correria...
- Não se pode generalizar Sr. Mauro!
- Com você é diferente?
- Com certeza, sambo bem menos que muitos por ai. O meu samba é do tamanho das minhas escolhas.
- Não é bem assim não. Tudo aqui é imposto, e, diga-se de passagem, quanto imposto. Desculpe a palavra, mas... Raça de políticos de merda! Os caras estão tentando acabar com a CPMF e o Ministro já diz que se isso ocorrer, vai ter que aumentar a carga tributária... Agora mesmo estou indo ao banco para pagar contas... Pagar, pagar e pagar... Por menos que se queira, tem sempre conta por debaixo da porta logo pela manhã. Está cada vez mais difícil de se viver aqui em São Paulo, pois as autoridades políticas desta cidade, ao invés de procurarem facilitar as coisas, estão a cada dia que passa embaçando mais... Você já regularizou a fachada da sua loja? Eu ainda não fiz a minha e nem sei se eu vou fazer... Os caras inventam cada uma que vou te falar.
- Não é o Sr. que vive dizendo que cada povo tem o governo que merece?
- Nem sei não se é bem assim! Eu não escolhi essa corja que está ai... Por acaso você escolheu o atual prefeito?
- Não!
- Pois nem eu! E olha só o presentinho que ele deu para nós comerciantes... Isso aqui é um verdadeiro lixo... Por fora, bela viola, por dentro pão bolorento. Os caras só se preocupam com fachadas... Não estão nem ai com o que realmente é de primeira necessidade pública. Não gosto nem de parar para pensar nesse assunto, pois o mesmo me ataca o fígado. Esse país não tem mais jeito mesmo... Você tem acompanhado as peripécias de Brasília?
- Para que? O Sr. ainda insiste em perder tempo com isso? Não sabe que lá tudo termina em pizza? Está todo mundo de rabo preso... É pura perda de tempo... Quer saber? Eles não estão nem ai para a sua observação televisiva, muito menos com os problemas sociais. A preocupação é se impor cada vez mais. Vivemos um momento de desmoralização política como nunca antes na história da nossa nação. E o que se pode fazer? Vamos, diga-me!... Estamos no país da impotência, onde os verdadeiros problemas sociais não merecem espaço de destaque nas manipuladas revistas semanais, no entanto, dão destaque de quatro páginas para o roubo de um "rolex" de uma "celebridade global", onde o cara se diz ter vergonha de ser paulista por ter seu relógio roubado... É muita mediocridade, você não acha? Será que não existem problemas bem maiores do que o roubo de um "rolex" para que se possa sentir envergonhado de fazer parte de uma determinada comunidade? Será que um apresentador "global" desconhece a realidade na qual sua cidade está inserida? Se conhece, alguma vez procurou apresentá-la de forma efusiva, ou ao contrário, seu trabalho também faz parte do processo de mediocrização nacional, que impede com que as pessoas abram os olhos para o estado de loucura a que estão se submetendo?... Só decidiu abrir a boca porque pegaram seu brinquedinho de estimação? Por que não abriu a boca antes? Por que a palavra é dada somente para a minoria das "celebridades globais" e não para a imensa massa de "anônimos globais"?... Neste país, dá-se bastante evidência para roubos a mão armada, desde que seja com revolver calibre trinta e oito e diante de todos a luz do dia. No entanto, os mega-assaltos feitos a mão armada com canetas de precisão, nos aposentos de um gabinete qualquer...
- Isso nem pensar, JR! Eles até mostram um pouquinho, mas num instante, o próprio sistema televiso, que também tem seu rabo preso, acaba abafando o caso...
- Então? Por que perder tempo com isso? Diga-me, o que é possível ser feito? O Sr. acredita ser possível mudar esse sistema? Ele é muito mais complexo do que se possa imaginar... Acho que o grande lance é descobrir um modo de vida, onde se possa compactuar o mínimo possível na manutenção desse sistema. Não se pode fazer um cavalo beber água enquanto ele quer cevada...
- O povo tem o governo e os impostos que merece!...
- Será mesmo que merecemos esse governo e esse monte de impostos por eles atribuídos?
- Você não votou neles?
- Votei, mas não foi isso que eles prometeram... Por isso que digo que não vale a pena se iludir com a política. A própria fonte dela é a corrupção organizada. O poder nas mãos deturpa tudo... Eu penso que o lance está na educação. É a educação que é fundamental, ou seja, é ela que funda o mental. Não existe uma real preocupação com a educação em nosso país; estamos vivendo uma grande crise de base educacional. É na educação e na cultura que reside o problema humano. Um país em que a diversão tem mais espaço do que a educação, o que mais se pode esperar? Um país onde cada um pensa em levar vantagem, o que se pode esperar? Sabe, outro dia estava assistindo um programa onde passava relatos de sobreviventes do holocausto. Num determinado momento uma das sobreviventes entrevistadas disse que naquele período de guerra, a cultura de roubo era natural, pois se tratava de uma maneira de sobreviver... Agora eu pergunto ao Sr.: qual a diferença daqueles tempos com os tempos atuais? Vivemos em constante estado de guerra, só que não declarada... Há a guerra por um espaço no transporte, numa colocação no mercado de trabalho, por um atendimento médico, por uma vaga numa escola pública, ou numa Universidade Federal, onde os ricos são sempre privilegiados... Faça um levantamento de quantos dos alunos de uma Faculdade Federal vem do sistema de ensino público e quantos vêm de escolas particulares... Temos uma cultura que favorece os já favorecidos e que oprime cada vez mais os desfavorecidos... Há uma constante contrariedade de valores... Quanto mais se tem mais se quer e eu te pergunto: quem é que fabrica isso? Não é a mídia através dos seus diversos "usuários de rolex"?... O Sr. já teve a oportunidade de assistir o filme "A Lista de Schindler"?
- Sim.
- Há uma cena em que um dos generais de um dos campos de concentração, logo pela manhã, diverte-se atirando nos "seus" prisioneiros no intervalo de cada tragada do seu cigarro... Um patrão compra no mesmo mês duas Zafiras e resmunga para dar R$ 100,00 de aumento no salário de seu funcionário... Fica diante de um computador fazendo análises do mercado financeiro, estudando como cortar custos na empresa, pressionando os funcionários enquanto se diverte com jogos na Internet... Estamos ou não estamos vivendo tempos de guerra?
- Isso foi sempre assim e sempre será... Quem pode mais cobra mais!
- E quem pode menos, como faz?
- Alguns, no desespero, ou talvez na malandragem, procuram um "usuário de rolex" dando sopa no congestionado trânsito da capital!
- Pois é! Mas, diga-me, o que o Sr. manda?
- Nada, não! Passei por aqui para roubar um pouquinho da sua energia. Como digo sempre...
- Já sei:...Esta loja não é a Eletropaulo...
- ... Mas está cheia de energia! Isso mesmo!
- Ainda bem que eu não cobro por ela, não é, Sr. Mauro?
- Só faltava você querer cobrar por isso... Do jeito que o ser humano está, acho que não falta muito para tamanha insensibilidade!... Acho que o ser humano está fazendo da frase "tempo é dinheiro", uma máxima.
- Oras, não seja tão negativo!
- Não tem nada de negativismo nisso; são fatos! Posso dizer isso com bastante conhecimento, afinal de contas, são 72 anos neste maledito planeta... Ninguém tem mais tempo para nada... É incrível, principalmente nestas duas últimas décadas, como o ser humano tem se tornado ganancioso... Nada é de graça, agora tudo tem o seu preço. Não duvido nada, daqui alguns dias, algum espertinho do governo querer patentear a energia solar e começar a cobrar por ela também...
- Já pensou?
- E vou mais longe... Daqui alguns anos, eles vão querer inventar um imposto sobre a qualidade do ar, isso tudo por causa dos altos níveis de poluição... Ninguém consegue fazer mais nada sem um carro, até parece que o mesmo é uma extensão do corpo humano... Para se ir a padaria, tem que se ir de carro. Para ser ir ao jornaleiro, tem que se ir de carro. E o maior dos contra-sensos: vão de carro até a academia e ficam andando cerca de 45 minutos numa esteira eletrônica... Pode uma coisa dessas?
- É a moda!
- É moda mesmo... No meu tempo, a moda era fazer Cooper... As coisas estão mudando muito rapidamente... Está ficando difícil de acompanhar essa mudança toda. Cada dia que vou ao banco, tem sempre uma mudança no sistema e sempre para tornar a coisa cada vez mais impessoal. Acredito que dentro de alguns anos, se continuar assim, o ser humano vai ser um escravo das máquinas tecnológicas e, o contato humano verdadeiro vai ser tão escasso, que é bem capaz que o homem ganancioso, ao se perceber desse fato, comece a cobrar por isso. Se bem que já fazem isso hoje em dia... Já viu quanto cobra um profissional da saúde mental por alguns poucos minutos da atenção de seus olhos e ouvidos?... É assustador o quadro que estamos pintando para as gerações vindouras. Ainda bem que não vou ficar muito tempo por aqui...
- O Sr. hoje está bastante depressivo!
- Não tem nada a ver com depressão... Isso são fatos! Só não enxerga quem não quer enxergar!
- O Sr. acha que é para isso mesmo que a humanidade está caminhando?
- Humanidade?... Onde?... Você acha mesmo que podemos usar o adjetivo "humanidade" para qualificar esse amontoado de gentalha egocêntrica? Ninguém está nem ai com ninguém! É cada um por si e Deus por todos – se é que essa coisa chamada Deus, exista mesmo. Deve ser um Deus bem fraquinho, ao ponto de criar um ser tão interesseiro como este. É incrível, mas, hoje, tudo tem seu preço. Acho que o mundo todo está bastante doente e, doente da mesma doença...
- Que doença Sr. Mauro?
- A maldita "Lei de Gerson"... Ainda bem que ela foi inventada no Brasil, pois se fosse obra dos americanos, se pagaria um preço muito mais alto por ela!
- Quanto a isso, não tem problema algum... Os chineses a pirataria rapidamente e o Brasil a colocaria nas diversas bancas espalhadas pela 25 de março e outras regiões centrais.
- Quer saber? Não sou contra os camelos! Eles têm mais que existir mesmo! Se eles cobram o preço que cobram, porque temos que pagar um preço absurdo pelas mesmas mercadorias numa loja qualquer? Por causa dos impostos é que a pirataria está sendo imposta...
- Isso é bastante complexo e contraditório... Cada um tem um ponto de vista com relação a isso...
- Sim o ponto de vista de cada um varia de acordo com o montante de notas que carrega na sua carteira... Quero ver se o cara com alto poder financeiro teria a mesma opinião quanto a pirataria se estivesse no lugar do menos favorecido... Diga-me uma coisa: você nunca comprou nada falsificado?
- Claro que sim!
- E nem que se me dissesse que não, estaria dizendo a verdade. Hoje, mesmo de forma inconsciente você está o tempo todo comprando coisas pirateadas... É no posto de gasolina, é na farmácia, é no mercado, é na auto-escola, é por toda parte... A "Lei de Gerson" e a Lei do "Jeitinho" estão por toda parte... Mesmo sem perceber, você está pagando por elas... E tem mais uma coisa: muitos desses caras financeiramente abastados, também praticam a falsificação, e, ao meu ver, a pior delas: eles falsificam o valor e a dignidade do ser humano, através de salários e cargas de trabalho totalmente desumanas. A cada dia que passa o mercado de trabalho espreme mais e mais o ser humano, com salários cada vez menores e com a carga de serviço que deveria ser de duas ou três pessoas. O pior de tudo é que a fila nos departamentos de RH são cada vez maiores e, por isso, as pessoas se conformam com esse sistema de pirataria de "valores humanos"... Todos se submetem a isso devido ao medo de ouvirem aquela frase de uma violência sutil: "se não estiver contente, a porta está aberta!"... Você não vê isso bem estampado na sua frente todos os dias? Estamos cada vez mais prisioneiros de nossas próprias invenções, de nossos impostos, de nosso sistema de trabalho, ou melhor, do próprio sistema. Apesar de sermos constituídos de carne, sangue e ossos, estamos a cada dia que passa, mais e mais parecidos com máquinas de produção em série. E isso não é pirataria? Isso é um verdadeiro processo mundialmente constitucionalizado de extorsão, uma prática do crime organizado, com base na CLT, onde se pode constranger alguém, mediante a "violência branca" aplicada através da grave ameaça psíquica do medo do desemprego... Tudo isso é feito para se ter o poder de obter para si ou para uma determinada "corporação", indevida vantagem econômica... O pior de tudo, é que nós somos os piratas de nós mesmos, uma vez que tanto individual como coletivamente, toleramos que se isso seja continuamente praticado, uma vez que não ousamos fazer algo em relação contrária. Por todo o mundo o que se vê é uma ruptura cada vez maior dos valores humanos, da degradação da espécie, através de toda espécie de constrangimento ilegal... É ilegal pagarmos impostos e não termos direito a uma "verdadeira educação", a saúde, a transportes públicos com qualidade, a uma moradia decente... Isso seria o mínimo. Mas não... Tudo nos é imposto através de pacotes e modelos pré-estabelecidos... E o pior, é que a grande maioria acredita ser livre por poder escolher aquilo que já foi previamente escolhido por alguns poucos... Escravos neste imenso navio pirata chamado "capitalismo selvagem"... É uma verdadeira selvageria o que estamos fazendo com nós mesmos e o que estamos deixando como legado para as novas gerações.
- Faz sentido!
- Bem, nossa prosa está muito boa, mas, tenho que ir... O sistema me chama! Quer alguma coisa do banco?
- Umas verdinhas se estiverem sobrando!
- Meu amigo, isso para mim é bastante difícil. Dinheiro comigo é que nem menstruação: aparece uma vez por mês, sempre precedido de muitas cólicas e dores de cabeça e dura somente alguns dias...
- Esse é o Sr. Mauro que eu conheço: sempre gozador!
- Pois é meu amigo, nesta terra de piratas, é preciso colocar um tampão numa vista e aprender a "gozar a dor"...
- Vai ver que é por isso que nas histórias de piratas tem sempre muita bebida por perto... Para amenizar a dor...
- Vai saber! Agora tenho que ir. Transmita um abraço para a senhora sua mãe! Outro dia passo com mais tempo. Até mais ver!
- Até breve e fique de olhos bem abertos... Ultimamente uma gangue de piratas tem procurado atacar pessoas da sua faixa etária na saída da agencia!
- Está vendo? Não disse? Nesta terra, o que não falta são piratas de plantão.. Olhos abertos, meu caro, olhos abertos! Até mais!
Sim, pensei comigo, de olhos abertos, tal como a pomba sobre os fios de alta tensão...
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