A filosofia e a psicologia fizeram-nos conhecer a existência de novos riscos e de uma nova coragem. Sócrates, há cerca de dois mil anos atrás, considerava como bravura uma coragem espiritual que vai muito além da coragem exigida de uma batalha material. Um soldado pode ser agressivo e desprezar a morte, sem contudo, ser bravo. Sua firmeza inabalável diante do perigo pode ser uma temeridade suicida, inspirada por um impulso coletivo. É a coragem pânica da criança primitiva e despercebida, que vive em nós.
.....Mas há, também, uma bravura espiritual, uma coragem mental que ultrapassa o próprio indivíduo. É a coragem que serve a uma ideia. É a que indaga, não apenas, qual é o preço da vida, mas ainda para que fim se está pedindo esse preço. Exige do eu uma superconsciência, como ser espiritual e pensante.
.....Data de pouco, comparativamente, o respeito pela coragem espiritual. O conceito de Sócrates levou longo tempo para permear nosso pensamento. Foi só depois da Reforma que ganhou valor a luta heróica do combatente solitário. Defender corajosamente uma opinião divergente, mesmo contra a pressão da maioria, recobriu-se de colorido heróico, especialmente onde eram proibidas dissenção e a heresia. A campanha silenciosa e persistente de Gandhi, pela resistência passiva, é hoje tida como mais corajosa que a bravura do soldado que se precipita no ardor da batalha. Não se encontra a bravura espiritual entre os conformistas, entre os que pregam uniformidade ou entre os que defendem o macio ajustamento social. Ela requer vigilância mental contínua e vigor espiritual para resistir às correntes que constrangem a pensar com conformidade. O homem tem que ser mais forte do que o simples desejo de autoproteção ou de autoafirmação; tem que ser capaz de ultrapassar-se a si mesmo no serviço de uma ideia, e tem que ser capaz de reconhecer lealmente que estava errado, quando se encontrarem valores mais altos.
.....Em verdade, há uma coragem espiritual que vai além de qualquer outro ato reflexo automático. O homem não é apenas massa de pão sovado; é também uma personalidade. Ele ousa enfrentar as massas humanas como enfrenta o mundo todo: como um ser humano pensante. Consciência, vigilância alerta, são também formas de coragem; são uma espécie de exploração e de comparação pessoais de valores. Tal coragem ousa quebrar velhas tradições, tabus, preconceitos e ousa duvidar do dogma. Os heróis do espírito não conhecem a fanfarra, as exibições patéticas, a falsa coragem da exaltação e da glória; esses bravos heróis travam sua luta íntima contra a rigidez, a covardia e o desejo de renunciar às convicções por amor do bem-estar. Essa coragem é capaz de permanecer alerta quando outros desejam amolentar-se no sono e no esquecimento. A ideologia totalitária é capaz de subornar o homem usando sua covardia profunda. Impele-o a renunciar às mais profundas convicções em troca de brilho e aprovação, para ser cultuado como herói, por honrarias e por aplausos. No entanto, o verdadeiro herói é fiel a seus ideais.
.....Só quando as pessoas tiverem aprendido a aceitar a responsabilidade individual, poderá o mundo ser auxiliado pelos esforços conjuntos de muitos indivíduos. Não imite o mestre, não se identifique meramente com o chefe, mas se, de fato, você concordar com ele, aceite sua direção com pleno reconhecimento de sua própria responsabilidade. Esse heroísmo do espírito só lhe será possível se você for senhor de suas emoções e tiver pleno domínio sobre sua agressividade.
.....O novo herói não será aclamado por ter musculatura rija ou força agressiva, mas em razão de seu caráter, de sua sabedoria e de sua harmonia mental.
.....O conhecimento profundo do que seja a bravura destrona como exaltada fascinação, a maioria das noções populares que se espalham a respeito. O conhecimento da psicologia favorece novas formas de coragem, que exigem labor exaustivo, labor de pensamento e não o fácil trabalho da negligência.
.....Não posso escolher senão essa resistente coragem de viver, coragem que já não abrange a mágica atração do suicídio e da decadência. A coragem deveria ser a fé vívida em tudo o que move a vida, a vigilância alerta e a consideração profunda de tudo que a anima.
.....Uma coragem assim, aceita o grande medo de todos os mistérios da vida e ousa conviver com eles.
.....Os nazistas tinham conhecimento muito claro da existência de homens inflexíveis entre suas vítimas, heróis cuja face não poderia ser mudada e cuja mente jamais seria coagida. Chamavam de insubordinação fisionômica à sua calma e à sua vontade resistente e tentavam matá-los, tão logo os encontravam. Felizmente os carcereiros tinham muitas deficiências quando se tratava de descobrir grandeza espiritual.
.....Quando acabou a guerra, uma vez cumprida a sua missão, muitos desses heróis desapareceram modestamente na multidão, deixando os postos de direção a políticos mais sofisticados.
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